terça-feira, 9 de abril de 2019

Seguindo as pegadas de Peter Pan (o personagem "nasce" num livro)



Olá!

Dando continuidade à série "Seguindo as pegadas de Peter Pan", chegamos ao ano de 1902. Naquele ano um novo monarca inglês foi coroado, Eduardo VII e, no meio literário, J.M.Barrie lançou o livro "The Little White Bird" (O Pequeno Pássaro Branco), um romance para leitores adultos:




Este livro foi escrito ao longo de quatro anos e no contexto da nossa viagem no tempo, tem um significado especial porque é nele que Peter Pan foi apresentado ao mundo.

Inicialmente a ideia era um capítulo dedicado ao personagem, mas Barrie o expandiu e acabou produzindo mais de cem páginas, resultando num livro dentro de outro livro.

O personagem vinha sendo construído na mente de Barrie há décadas, ocupando bastante espaço em suas costumeiras anotações. Barrie preencheu centenas de cadernos com registros que utilizava para escrever seus livros e suas peças de teatro. (Veja nota 1)


No entanto, como vimos no post anterior, foi a partir das vivências de Barrie com a família Davies, iniciadas em 1897, que a construção do personagem Peter Pan foi expandida consideravelmente e, finalmente, "materializou-se" como tal no livro publicado em 1902. (Veja nota 2)


"The Little White Bird" é uma série de episódios curtos que incluem relatos do dia-a-dia do narrador, (ambientados na Londres contemporânea do autor do livro) e contos com elementos de ficção mágica ambientados no Kensington Gardens e em outros locais. A narrativa mescla fantasia, comédia social e tons escuros e agressivos, com fortes traços autobiográficos.




Personagens do livro

Capitão W____ , o narrador em primeira pessoa, descrito pelo escritor e cineasta Andrew Birkin como "Barrie mal disfarçado". Arrisco dizer que Barrie escolheu a letra W tirando-a do seu primeiro sobrenome: Matthew

David , um menino de 6 anos de idade no início do livro, mas que aparece em várias idades ao longo da história, desde um feto no útero até um bebê e até a idade de 6 anos. George Llewelyn Davies, um dos vários filhos da família Davies, forneceu inspiração para muitos personagens nos escritos de Barrie; David também era o nome do irmão de Barrie, morto tragicamente antes de completar 14 anos.

Mary A____ , mãe de David, que compartilha um nome com a esposa de Barrie (nascida Mary Ansell), mas de acordo com Birkin é "modelado de perto" em Sylvia Llewelyn Davies, a mãe dos meninos. Durante a história, o capitão W vê Mary progredir de amante jovem para recém-casada e como uma jovem mãe. Os sentimentos do narrador em relação a Mary variam entre afeição, raiva e ciúme, quando ele compete com ela pelas atenções de David.

Peter Panum menino mágico que escapou de ser totalmente humano aos 7 dias de idade e desde então voa e vive entre as fadas e outros seres mágicos habitantes do Kensington Gardens . Ele difere do retrato mais conhecido do personagem, principalmente por ser descrito como tendo apenas uma semana de idade, em vez de uma criança mais velha, como aparecerá no teatro e também no futuro romance.

Maimie Mannering , uma menina de quatro anos que se torna amiga de Peter Pan. Sua participação na história começa quando ela fica presa dentro dos Jardins após o "tempo de bloqueio" (fechamento dos portões), porque as fadas mudaram o grande relógio no jardim para antecipar uma hora o jogo planejado para aquela noite. O personagem Maimie é o precursor literário do personagem Wendy Darling da peça de teatro e do romance Peter Pan.

Porthos, um grande São Bernardo, baseado no cachorro de Barrie com o mesmo nome e que faleceu em 1901.

Muito se têm escrito até hoje sobre o conteúdo e os significados desta obra que mescla luz e escuridão. Há passagens cujos reais significados permanecem indecifráveis até os dias de hoje. Aliás, o próprio J.M.Barrie ainda se mantém parcialmente indecifrável e, por isso, permanece sendo objeto de estudos e análises. Assim como o personagem Peter Pan. (Veja nota 3)


Os capítulos 13 a 18 foram os responsáveis pela visibilidade e sucesso do livro como um todo, até a estréia da peça teatral em 1904, cujo imenso sucesso se sobrepôs a ele.


Em 1906 foi publicada uma edição contendo somente os últimos 6 capítulos, sob o título " Peter Pan in Kensington Gardens", desta vez dirigido ao público leitor infantil:



Capa da primeira edição, 1906
Via


Este livro continua a ser editado até os dias de hoje, com diferentes capas e ilustrações. A primeira edição foi belamente ilustrada por Arthur Rackham. (Veja nota 4)

O que me interessa aqui é esta edição que contém os capítulos referentes à história da origem de Peter Pan, conhecida por poucas pessoas. Para isso, utilizei a única edição em Língua Portuguesa existente, graças à feliz iniciativa da editora paulista Universo dos Livros, que traduziu e publicou no Brasil em 2015 sob o título "Peter Pan a Origem da Lenda".


A imagem da capa não poderia ser mais linda e significativa para quem está familiarizado com toda a história por trás da lenda:




Embora merecesse, infelizmente a edição não é capa dura, nem ilustrada, nem comentada, mas não se pode ter tudo, não é mesmo?


No capítulo I Barrie descreveu detalhadamente o Kensington Gardens e nos transporta num passeio mágico...



Mapa do Kensington Gardens feito por Barrie para crianças
Via

O vídeo abaixo, produzido em 2017, (em Língua Inglesa), mostra os locais de inspiração para Peter Pan no Hyde Park e Kensington Gardens, incluindo as pedras mencionadas no livro e que realmente existem até hoje.



Via

Voltando ao livro, o narrador começa dizendo ao leitor:


"Você perceberá por conta própria como é difícil acompanhar as aventuras de Peter Pan, a menos que esteja familiarizado com os Jardins de Kensington. Eles ficam em Londres, onde mora o rei, e eu costumava levar David lá quase todos os dias, só não quando ele estivesse realmente doente."


Num dos portões de entrada havia a senhora dos balões, que se mantinha abaixada, "pois os balões estão sempre a puxá-la, e a força que ela precisa fazer para se segurar faz com que seu rosto fique vermelho. Certo dia, em seu lugar estava uma nova mulher, pois a anterior havia se deixado levar. David ficou muito triste pela outra mulher, mas, se ela tinha se deixado levar, ele gostaria de ter estado lá para assistir." 





Continuando a narrativa, lemos:

"Os Jardins são um lugar tremendamente enorme, com centenas de milhares de árvores. Primeiro você passa pelas figueiras, mas não deve se demorar ali. As figueiras são o abrigo de pequenos seres superiores, proibidos de se misturar com a plebe, como conta a lenda. Eles se vestem com os figos. Esses queridos e delicados seres são desdenhosamente chamados de Figos por David."




Ao longo de 11 páginas (na edição brasileira), Barrie descreveu detalhadamente os Jardins, um lugar onde, assim que os portões eram fechados toda a magia começava, pois todos os seres encantados estão mais ou menos escondidos até o anoitecer...






Eis os locais principais:


A Via Larga
"Na Via Larga, você encontra  todos aqueles que vale a pena conhecer e, junto deles, há geralmente um adulto para impedi-los de ir até a grama molhada e fazê-los ficar ali nos bancos, infelizes, como se fossem rebeldes ou frescos. Ser fresco é resmungar porque a babá não carrega você, ou ficar ali, chupando o dedo, e é uma coisa péssima. Mas ser rebelde significa chutar tudo, e há um grau de satisfação nisso." 

A Lagoa Redonda

"você pode tentar or até a Lagoa Redonda, mas as babás detestam esse passeio porque não são muito corajosas, então fazem você olhar para o outro lado, para a Grande Penny [uma estátua erguida em homenagem a uma menina] e o Palácio dos Bebês."

A Corcunda

"é a parte da Via Larga onde acontecem as grandes corridas. Mesmo que você não tenha interesse em corrida, acaba correndo quando chega à Corcunda, pois é um local fascinantemente escorregadio."

Via dos Bebês

"à direita da Via Larga temos a Via dos Bebês, que fica tão cheia de carrinhos de bebê que seria possível cruzar de um lado a outro pisando sobre eles, mas as babás não vão deixar você fazer isso."

Rua do Piquenique

"Lá toma-se chá, e as flores das castanheiras caem em sua xícara enquanto você bebe. Crianças comuns também fazem piquenique ali, e as flores também caem em suas xícaras da mesma maneira."

A Serpentina

"É um lago adorável, e no fundo dele, há uma floresta submersa. Se você der uma espiada, conseguirá ver as árvores crescendo de cabeça para baixo, e dizem que, à noite, também há estrelas submersas. Se for isso mesmo, Peter Pan vê as mesmas estrelas quando veleja no Ninho do Sabiá. Apenas uma pequena parte da Serpentina fica nos Jardins, pois logo ela passa por baixo de uma ponte que leva à distante ilha onde todos os pássaros nascem e se tornam meninos e meninas. Nenhum humano, exceto Peter Pan (e ele á apenas metade humano), pode chegar à ilha, mas você pode escrever o que deseja (menino, menina, loiro ou moreno) em um pedaço de papel e dobrar na forma de um barquinho para colocar na água. Depois de escurecer, ele chegará à ilha de Peter Pan."



"Se você perguntar para sua mãe se ela sabia da existência de Peter Pan quando garota, a resposta será a seguinte: 'Claro que sim, filho'"


No capítulo II, o narrador começa a contar a história de Peter Pan.

A história foi contada pelo narrador, por David e por ambos:


"Devo dizer que, a seguir, está a nossa versão da história: primeiro, eu disse isso para ele, e depois ele disse para mim, sendo que a história ficou um tanto diferente. Então, recontei a história com suas inclusões, e seguimos assim até nenhum dos dois saber mais dizer se a história é dele ou minha."


E o narrador acrescenta uma explicação importante:


" a estrutura narrativa e as reflexões morais são minha, (...) mas as partes interessantes sobre os padrões dos bebês em estágio pássaro são, em sua maioria, remanescentes das memórias que David acessou pressionando as mãos contra as têmporas e se esforçando para lembrar."


Todas as crianças foram pássaros antes de serem humanos e por isso são "naturalmente, um pouco selvagens nas suas primeiras semanas de vida, e sentem um comichão nos ombros, onde as asas costumavam estar."


E foi esse comichão que motivou o pequeno Peter Pan, aos 7 dias de vida, a sair pela janela de sua casa. Sim, aqui é a história de Peter Pan bebê. Aposto que você nem imaginava isso, não é mesmo?


No parapeito da janela ele "observou à distância as árvores que, sem dúvida, eram dos Jardins de Kensington. No momento em que as viu, ele se esqueceu completamente de que era um garotinho usando pijamas e saiu voando, passou pelas casas e se dirigiu aos Jardins. É incrível que ele possa ter voado sem asas, mas o local onde elas costumavam estar eram muito sensíveis e, talvez, todos nós pudéssemos voar se tivéssemos absoluta certeza de tal capacidade, assim como aconteceu com o forte Peter Pan naquela noite."




"Alegremente, ele pousou no gramado aberto entre o Palácio do Bebê e a Serpentina, e a primeira coisa que fez foi deitar-se sobre suas costas e chutar."

Peter Pan passou a primeira noite dormindo acomodado num galho de árvore na Via dos Bebês. Sentiu muito frio, claro. 

Ele tinha conhecimento da existência das fadas, claro, e ao anoitecer ele podia vê-las em plena atividade, tão ocupadas com seus afazeres que nem notaram sua presença. Ele ouvira dizer que eram criaturas muito inteligentes, então quando percebeu que precisava de ajuda decidiu procurá-las...
Mas as fadas e todos os seres encantados que viviam nos Jardins fugiam de Peter... Aos olhos deles, ele era um humano e os humanos, bem, os humanos nem sempre acreditam em fadas...


Assim, a percepção da presença de Peter Pan pelas fadas e outros seres mágicos causaram um verdadeiro rebuliço nos Jardins:

"Multidões de fadas corriam de um lado para o outro, pedindo ajuda, assustadas; as luzes se apagaram, as portas se fecharam, e de dentro do palácio da Rainha Mab ouviu-se o rufar dos tambores, que indicavam a convocação da guarda real."



A Rainha Mab
Via

"Peter ouvia os pequenos seres cochichando que havia um humano nos Jardins depois do toque de recolher, mas em momento algum imaginou que ele fosse o humano."


Ele acabou desistindo das fadas e saiu à procura dos pássaros para pedir ajuda, pois estava com o nariz cada vez mais congestionado e cada vez mais desejoso de saber o que acontecera com seu nariz. Claro, ele não tinha a menor ideia de como resolver um problema que somente as mães sabem...


Mas os pássaros haviam levantado vôo em alvoroço assim que ele tinha aterrissado no gramado ao chegar aos Jardins...


E a esta altura, lemos uma passagem do texto que é particularmente mágica:


"Todos os seres vivos estavam se esquivando dele. Pobre Peter Pan! Ele se sentou e chorou e, mesmo sem saber ao certo, para um pássaro, ele estava sentado de forma errada. Era uma bênção que não soubesse, pois, caso contrário, perderia a fé na sua capacidade de voar, e no momento em que você duvida que pode voar, perde para sempre tal poder. O motivo para os pássaros poderem voar e nós não é o simples fato de que eles têm plena fé. E ter fé é ter asas."


Mas voar era imprescindível se ele quisesse chegar à ilha da Serpentina...

E então Peter Pan voou até lá...

"E foi, então, rumo a essa ilha que Peter voou, para apresentar seu estranho caso para o velho corvo Salomon. Lá ele aterrisou aliviado, sentindo-se em casa, como os pássaros costumavam se sentir."


Na verdade, Solomon estava acordado e havia ouvido todas as aventuras de Peter... Ele sabia sobre tudo que acontecia nos Jardins...



Solomon conversa com Peter Pan, sob os ouvidos atentos de criaturinhas mágicas

O diálogo entre o corvo e Peter esclarece detalhadamente a natureza e a alma que J.M. Barrie concebeu para Peter Pan:


"- Olhe para o seu pijama, se não puder acreditar em mim - ele disse.


Peter, com os olhos arregalados, olhou para o pijama e, depois, para os pássaros adormecidos. Nenhum deles vestia roupa alguma.


- Quantos dedos você tem? - Solomon perguntou, de forma um pouco dura.


Peter olhou para si e viu que tinha dedos. Ele ficou em choque e até parou de sentir frio.

- Sacuda as penas - disse o velho corvo.

Peter tentou desesperadamente obedecê-lo, mas ele não tinha penas. Então, levantou-se, desajeitado, e, pela primeira vez desde que havia parado no parapeito da janela, lembrou-se de uma mulher que gostava muito dele.


- Acho que devo voltar para minha mãe - ele disse, timidamente.


- Adeus - Solomon respondeu com uma expressão estranha em seu olhar.


Mas Peter hesitou.


- Por que você não vai? - o ancião perguntou, educadamente.


- Será... - Peter começou, com a voz rouca. - Será que ainda posso voar?


Viu só, ele havia perdido a fé.


- Pobre meio-a-meio! - disse Solomon, que não tinha o coração tão duro assim. - Você nunca mais poderá voar, nem mesmo nos dias de vento. Terá de viver na ilha para sempre.


- E nunca mais ir nem mesmo aos Jardins de Kensington? - Peter perguntou arrasado.


- Como você poderia ir até lá? - questionou Solomon.


O corvo prometeu, muito gentilmente, no entanto, ensinar a Peter tudo sobre o comportamento dos pássaros que pudesse ser aprendido por alguém com um formato tão diferente.


- Então, não poderei ser exatamente um humano? - Peter perguntou.


- Não.


- E nem exatamente um pássaro?


- Não.


E o que vou ser?


- Será um pouco de um e um pouco do outro - respondeu Solomon. E ele certamente era um grande sábio, pois foi exatamente o que aconteceu."


Depois disso...


"Os pássaros na ilha nunca se acostumaram com a presença de Peter. Suas características singulares os incomodavam todos os dias, como se fossem novidades, embora, na verdade, o que era novo eram os pássaros. Eles saíam dos ovos todos os dias e riam dele uma vez, depois voavam para se tornar humanos; então, outros pássaros saíam dos ovos. E assim seguia o ciclo eterno."



Continua no próximo post!

Beijo
Ju




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Notas

(1) Existe um banco de dados digital com direitos de uso protegidos e restritos, onde estão armazenados 4667 registros deixados por J.M.Barrie, a maioria deles inédita, sendo compostos por fotografias, cartas e outros. O banco de dados está dividido em três categorias: J.M.Barrie, Família Davies e Peter Pan. 

(2) O livro "The Little White Bird" nunca foi publicado no Brasil. Felizmente já se encontra na categoria "domínio público" e se você tiver interesse em acessá-lo na forma digital, que inclui as belíssimas ilustrações de Arthur Rackham, poderá fazê-lo no site do Projeto Gutenberg, a mais antiga biblioteca digital existente. Foi criado em 1971 e é um esforço voluntário para digitalizar, arquivar e distribuir obras culturais através da digitalização de livros. A maioria dos itens no seu acervo são textos completos de livros em domínio público.


(3) Há muitos estudos sobre J.M.Barrie e Peter Pan, produzidos em diferentes épocas e por autores das áreas de Literatura, Psicanálise e outras. Incluem artigos, monografias para conclusão de cursos universitários, ensaios, entre outros, sem falar nas várias biografias que foram escritas, sendo que apenas uma delas foi autorizada a ser feita. Os mais recentes estudos que encontrei datam de 2018.  Para os interessados, um farto material encontra-se disponível na Internet, tanto produzido no exterior como no Brasil. 

(4) https://en.wikipedia.org/wiki/Arthur_Rackham

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