terça-feira, 16 de abril de 2019

Seguindo as pegadas de Peter Pan (rumo ao romance de 1911)



Olá!

Barrie já era um dramaturgo famoso na época em que a peça "Peter Pan, ou o menino que não cresceria", estreou em Londres no ano de 1904, mas o enorme sucesso que obteve com ela, segundo Jack Zipes, o tornou "extraordinariamente rico e famoso". Entretanto, ainda segundo Zipes, "a fama e o dinheiro nunca lhe subiram à cabeça; ele vivia para seus projetos." 

E um desses projetos continuava sendo Peter Pan que, após o grande sucesso no teatro, retornaria para as páginas de um livro, desta vez protagonizando uma história mais robusta, a versão em prosa definitiva. E uma espécie de "tributo" à Sylvia Llewelyn Davies... uma espécie de epílogo...

Mas chegar a 1911 não foi um percurso fácil para Barrie e nem para a família Davies.

Em 1904, ano em que a peça estreou, Arthur Davies se mudou com a família para fora de Londres após adquirir "Egerton House", uma mansão elizabetana localizada em Berkhamsted (Hertfordshire).


Imagem de 1936

Os capítulos de "O Pequeno Pássaro Branco" referentes a Peter Pan foram republicados em 1906 como "Peter Pan em Kensington Gardens". Barrie entregou um exemplar a Arthur Davies com a dedicatória: 


 "Para Sylvia e Arthur Llewelyn Davies e seus meninos (meus meninos) ". (Veja nota 1)


 No mesmo ano Arthur foi diagnosticado com sarcoma maligno de mandíbula, um câncer devastador que o deixou seriamente mutilado: duas cirurgias removeram boa parte de sua mandíbula superior, palato e maçãs do rosto, deixando-o incapaz de falar. (Veja nota 2)


Barrie arcou com as despesas médicas e tornou-se presença constante ao lado de Arthur até o fim dos seus dias. Consta que, em uma carta para seu filho Peter, Arthur teria descrito Barrie como "um amigo muito bom para todos nós".  (Veja nota 3)


Após a morte do marido, Sylvia retorna para Londres com os cinco filhos, mas as tragédias não param por aí.

Barrie já havia perdido os pais e outros membros da sua família; sua esposa, Mary Ansell, tinha um amante, fato que Barrie desconhecia até então e que acabaria sendo motivo do divórcio em 1909. (Veja nota 4) 

No Verão do mesmo ano, Sylvia Llewelyn Davies foi diagnosticada com câncer de pulmão, vindo a falecer em agosto de 1910. 

As perdas sucessivas, somadas ao brusco término do seu casamento, abalaram a capacidade produtiva de Barrie e, segundo Jack Zipes, não foi "capaz de escrever grandes peças depois disso."

Órfãos, os meninos passaram a ser tutorados por membros da família e por Barrie. Essa questão é envolta em controvérsias: o testamento de Sylvia é vago, segundo Jack Zipes; por outro lado, há quem afirme que Barrie teria deliberadamente alterado os termos em seu favor no momento da transcrição; há quem afirme que a alteração ocorreu, mas não teria sido deliberada e sim acidental, por questões de grafia.  Enfim, não é meu objetivo aqui discutir essa questão. O fato é que Barrie tomou para si, mais do que qualquer outra pessoa, a responsabilidade sobre os meninos, "os meus meninos", como ele dizia. (Veja nota 5)

Mandou-os para estudar no prestigiado Eton, exceto John/Jack, que havia se alistado à Marinha Real Inglesa pouco antes da morte de sua mãe. (Veja nota 6)



Barrie garantiu a boa educação dos meninos, proporcionou diversão e viagens de férias, deu-lhes uma vida confortável e segura até que pudessem tornar-se independentes. Barrie dedicou-se a eles como um verdadeiro pai e, provavelmente, foi o que salvou sua própria vida, mas toda a sua dedicação não seria suficiente para evitar outras tragédias que estavam por vir e que deixariam profundas marcas em Barrie e no restante da família Llewelyn Davies.

Foi nesse contexto meio caótico que Barrie concluiu o romance "Peter and Wendy", publicado pela primeira vez em 1911:


Neste livro está a adaptação para romance da peça teatral de 1904. A edição foi lindamente ilustrada por Francis Donkin Bedford (1864 - 1954). (Veja nota 7)


Frontispício do livro

De acordo com Jack Zipes:

(...) "O romance 'definitivo' é a mais complicada e sofisticada de todas as versões de Peter Pan, e embora possa dirigir-se em parte aos leitores jovens, é claramente um testamento para Sylvia, escrito antes de tudo para adultos. Não se trata de ficção para crianças. As alusões cômicas cifradas, os apartes, os gracejos e as intrusões que ocorrem numa piscadela de olhos são numerosas demais para que uma criança possa perceber tudo o que ocorre ao longo do romance."(...)

E nem os adultos...

(...) "Não que os leitores adultos possam compreender por completo o significado de Peter Pan e da Terra do Nunca, mas fica claro que o narrador do romance conta sua história para adultos e, dado o conhecimento íntimo dele sobre as crianças e o mundo delas - algo que ostenta para seus leitores -, assume a missão de explicar as crianças para os adultos." (Veja nota 8)

Esse é o romance final, cujo texto integral poucas pessoas leram. Caso queira ler, há duas muito boas opções com traduções primorosas: a edição da Zahar (da série Clássicos da Zahar), que é comentada e ilustrada com reproduções das ilustrações originais da edição de 1911 (é a edição que eu tenho) e a edição da Cosac Nayfi. 

Foi nesse romance, resultado de todo um processo criativo plenamente influenciado por vidas reais ao longo de 45 anos, que eu me inspirei para criar a minha versão do personagem Peter Pan em forma de boneco de pano.

Até o próximo post!
Beijo
Ju




--------------
Notas:

(1) Consta que Arthur teria ficado ressentido com a observação entre parênteses na dedicatória. Cf. Chaney, Lisa. Hide-and-Seek with Angels - Uma Vida de JM Barrie , 2005. Citado em www.mewstatesman.co/node/162450

(2) Não posso deixar de notar o seguinte: Arthur suportou calado a presença de Barrie na sua família desde 1897, quando conheceu 3 dos filhos dele durante um de seus habituais passeios no Kensington Gardens: George, John e o recém-nascido Peter. Desde então, como já mencionei em outro post, Barrie tornou-se presença constante, quase obsessiva entre os Davies. Arthur, por amor à esposa e ciente de que ela gostava muito de Barrie e das diversões que ele proporcionava aos seus filhos, decidiu não interferir. Calou-se. Curiosamente, foi um câncer de mandíbula que tirou sua vida após muito sofrimento. 

(3) Cf. Birkin, Andrew. " JM Barrie and The Lost Boys", 1979. Citado em: https://en.wikipedia.org/wiki/Arthur_Llewelyn_Davies
Arthur Llewelyn Davies faleceu aos 44 anos de idade, em 19 de Abril de 1907. 

(4) Segundo diversas fontes encontradas no Wikipedia britânico, Barrie conheceu a atriz Mary Ansell em 1891 através de seu amigo Jerome K., a quem havia pedido que encontrasse uma linda atriz para desempenhar um dos papéis em sua peça Walker in London . Os dois se tornaram amigos a ponto de Mary se dispor a ajudar a família de Barrie a cuidar dele enquanto esteve doente entre 1893 e 1894. Eles se casaram em Kirriemuir, Escócia, cidade natal de Barrie, em 9 de julho de 1894, numa cerimônia simples realizada na casa dos pais, seguindo a tradição escocesa. Após o casamento, Mary abandonou os palcos . 

Todas as fontes que consultei  são unânimes em afirmar que o casamento de Barrie e Mary Ansell nunca foi consumado, motivo pelo qual nunca tiveram filhos, embora Mary desejasse muito isso. Diversas fontes indicam que Barrie era um indivíduo assexuado; outras, que sofria de disfunção erétil. Em ambos os casos, incapaz fisicamente de se relacionar intimamente. Amigos do casal acreditavam que se tratava de um casamento feliz, tanto que a notícia de que Barrie havia entrado com uma ação de divórcio contra sua esposa causou espanto em muita gente. Mas a realidade era bem distinta. 

Desde meados de 1908 Mary mantinha uma relação extraconjugal com Gilbert Cannan, um associado de Barrie e frequentador da casa da família, 20 anos mais jovem que ela. Quando Barrie soube do caso em julho de 1909, tentou convencê-la a terminar o romance, sem sucesso. Queria evitar o escândalo do divórcio e tentou convencê-la a uma separação legal, desde que ela não visse mais o amante. Também sem sucesso, então Barrie entrou com a ação de divórcio alegando infidelidade. Apesar dos esforços , os amigos de Barrie não conseguiram evitar a publicação do caso na imprensa. Barrie continuou a apoiar Mary financeiramente, mesmo depois que ela se casou com Cannan, dando-lhe uma mesada anual, que foi entregue em um jantar privado realizado no aniversário de casamento de Barrie. E Mary também beneficiada por Barrie após sua morte em 1937, deixando a ela, em testamento, significativos recursos.

(5) A esta altura, os meninos Davies: George, John, Peter, Michael e Nicholas estavam, respectivamente, com 17, 16, 13, 10 e 7 anos de idade.

(6) Sobre o Eton College: 

(7) Sobre FD Bedford:

(8) Todas as falas de Jack Zipes transcritas neste post, incluindo esta última, estão no posfácio inédito escrito por ele na edição da Cosac Naify, "Peter e Wendy: J.M.Barrie", 2012.


Nenhum comentário:

Postar um comentário